segunda-feira, abril 07, 2014

O...

... que a capacidade humana de um homem pode fazer na forma como os que o rodeiam o vêem...


Numa sexta-feira, saía o comandante Calvão da Unidade um pouco mais tarde do que o costume, trajando à civil no seu carro pessoal como era hábito, quando antes de chegar a Coina dá conta de um vulto furtivo que, cosido com a sombra das árvores da fronteira Mata da Machada, tentava passar despercebido enquanto seguia a pé na mesma direcção. O cabelo cortado rente, o porte juvenil e a intenção visível de circular sem ser detectado não deixavam qualquer dúvida de que se tratava de um aluno castigado a "dar o salto". 
O comandante pára o carro e chama-o. Surpreendido, o rapaz obedece logo que reconhece quem lhe dá ordem tão peremptória e aproxima-se da viatura apavorado. Desde que chegara à Escola que ouvia falar de Alpoim Calvão como um veterano muito duro da guerra na Guiné e naquele momento via realizados os seus piores receios: ser apanhado em flagrante pelo próprio comandante. Ao ser interrogado sobre qual o seu destino, responde atrapalhado, titubeando, que procurava boleia para Lisboa. Foi pois com surpresa que ouviu o seu superior retorquir-lhe:
- Sobre, eu também vou para Lisboa e levo-te.
Sem entender bem o que se passava, o mancebo entra na viatura e ambos seguem viagem, conversando sobre banalidades. Ao chegar a Lisboa, o comandante pede-lhe a morada para onde se dirige, afirmando ser sua vontade levá-lo a casa. O rapaz fica perplexo, já sem saber o que pensar daquela situação tão insólita.
Chegados ao destino, o comandante surpreende-o novamente perguntado-lhe quando tenciona regressar.
- Domingo às 20h00 - responde o rapaz.
- Pois seja Domingo. Às 20h00, estarei aqui para te levar de volta.
Esse não foi certamente o fim-de-semana mais tranquilo na vida daquele aluno fuzileiro, mas a verdade é que no dia e hora aprazados nenhum dos dois faltou ao encontro e regressaram juntos à Escola, conversando sobre trivialidades durante todo o caminho. Passando por Coina e ao chegar ao local onde dois dias antes apanhara o rapaz (que nesta altura já se devia estar a ver na prisão), o comandante pára o carro e diz-lhe:
- Sai. Aqui te apanhei, aqui te deixo. Regressa à Escola e se o fizeres sem ninguém te detectar nada de mal te sucederá. Mas se fores apanhado serei rigoroso no castigo e podes estar certo que ninguém te livrará de ir parar com os ossos à prisão.
Ao entrar na Unidade, o comandante dirige-se ao gabinete do oficial de serviço, como é boa norma na Marinha, cumprimenta-o, interroga-o sobre os incidentes do fim-de-semana e ao saber que estava tudo tranquilo, vai-se deitar sem tocar no assunto do fugitivo. No dia seguinte, logo de manhã, quando o oficial de serviço se apresenta no seu gabinete, o comandante repete as perguntas e fica satisfeito ao ser informado de que as licenças tinham regressado sem novidade.
Muitas vezes se voltou a cruzar o comandante Calvão com o militar fugitivo, mas jamais tocou no assunto da escapadela. A coragem, o "desenrascanço" e a habilidade do rapaz ficaram provados e, no seu entender, valiam o perdão.
A História não guardou o nome daquele homem, mas duma coisa podemos estar certos: daquele dia em diante havia mais um fuzileiro que tudo faria pelo seu comandante, que a isso mandava a gratidão, virtude que os marinheiros sabem cultivar melhor do que ninguém. 

in Hortelão, R., de Baêna, L. S. & Sousa, A. M. (2012). Alpoim Calvão. Honra e Dever. Porto: Caminhos Romanos.

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